O isolamento social provocado pela pandemia que levou, entre outras coisas, ao fechamento dos cinemas, fez com que nós, cinéfilos, procurássemos alternativas para ver um bom filme. Foi assim que descobri que praticamente toda a obra de Ousmane Sembene está disponível no YouTube e, melhor ainda, a maioria legendada em português ou, quando não, em inglês ou espanhol.
O escritor e cineasta Ousmane Sembene é considerado o pai do cinema africano. Em seus filmes ele aborda temas como a pobreza extrema, incesto, neocolonialismo, racismo estrutural, burocracia, militarismo forçado, impotência, conflitos religiosos, injustiças históricas, ajuda humanitária, independência feminina e mutilação genital e, em todos, sempre a força das mulheres.
Borom Sarret (1963)
O primeiro filme de Sembene é esse curta-metragem sobre um pobre charreteiro que carrega passageiros ainda mais pobres que ele, por uma já caótica cidade do Senegal. No caminho acompanha-se os dramas de alguns deles, quando ele leva uma mulher prestes a dar à luz até a maternidade e, no extremo oposto, um pai levando o cadáver do bebê ao cemitério. Quando o charreteiro aceita a proposta de um passageiro para ser levado ao lado rico da cidade, vemos um exemplo claro do que se costumou chamar cidade partida. Aqui já surge a figura do griot (o contador de histórias, aquele que dissemina oralmente as tradições do seu povo), peça chave do cinema de Sembene.
Niaye (1964)
Todos as tragédias da humanidade reunidas numa aldeia africana: incesto, loucura, suicídio, parricídio, golpe de estado, neocolonialismo, exílio, abandono de menores. Claro está que a aldeia é um microcosmo da África.
Dentre os vários narradores do drama está o baobá, a milenar árvore senegalesa, testemunha muda da história a qual Sembene dá voz.
A Negra de... (1966)
Em pouco mais de 57 minutos, acompanhamos a tentativa de desumanização de Diouana, jovem e sonhadora africana, por seus patrões franceses. Levada para a Riviera Francesa sob o argumento de trabalhar como babá dos filhos do casal, ela vai se dando conta de sua situação, percebendo ser uma empregada doméstica e logo uma escrava moderna, sem direito nem de sair do apartamento. Diouana, então, passará a preparar sua silenciosa e solitária revolta. Simplismo? Filme datado? Basta ver o que está acontecendo no Brasil agora para saber que a resposta é não. Um dos mais importantes filmes já feitos, baseado num livro do próprio Sembene.
Mandabi (1968)
Depois do pesadíssimo "La Noire de...", Sembene resolveu fazer uma comédia de costumes. Desta vez o personagem é masculino, Ibrahim Dieng, marido de duas esposas e pai de sete filhos, levando uma vida de bonachão até receber uma ordem de pagamento do sobrinho que mora em Paris. Ibrahim então viverá uma via crucis para receber o dinheiro, encontrando todos os entraves burocráticos pela frente. A coisa vai saindo do controle, suas duas esposas vão entrando em desespero, todo seu entorno vai entrando em ebulição, a maioria querendo tirar proveito próprio. Quando tudo parece perdido surge uma solução Deus ex machina. Brilhante!
Emitai (1971)
Os homens de uma aldeia são convocados a se alistar voluntariamente (na verdade são sequestrados mesmo) para lutar ao lado do exército francês na Segunda Guerra Mundial.
Um ano depois, as mulheres da aldeia e seus filhos conseguiram uma colheita recorde de arroz, que os generais exigirão que seja recolhida para alimentar as tropas. Isso levará a uma divisão na aldeia entre os líderes religiosos, preocupados com os profundos desejos de seus Deuses, e o pragmatismo das mulheres, que se recusarão a entregar o arroz e serão detidas sob o forte sol africano até mudarem de opinião. Sembene volta a enfiar, sem dó nem piedade, o dedo na ferida do colonialismo. O final é dos mais chocantes e sem concessões.
O cinema de Ousmane Sembene, sua análise e discussão, são cada vez mais essenciais no mundo atual.
Em breve a parte final.
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