09/09/2020

OUSMANE SEMBENE NA VEIA - FINAL


 Xala (1975)

O filme começa com o povo comemorando na rua a independência do Senegal depois de anos de dominação francesa.

Na "Câmara de Comércio e Indústria", políticos tomam o controle da casa, prometendo grandeza, desenvolvimento e liberdade para o país.

Um desses políticos, El Hadji Abdou Kader Beye, convida seus colegas para a cerimônia de seu casamento com sua terceira esposa, bem mais jovem que ele (afinal, a modernidade não pode impedir a africanidade).

Mas na noite de núpcias, El Hadji é vítima de um feitiço, o "xala", que o deixa impotente, para indignação e deboche de sua sogra e amigas.

Maravilhosa sátira política de Sembene, baseada em seu livro, que merece uma análise mais profunda do que essas poucas linhas.

Kader Beye, sujeito arrogante que estapeia a filha mais velha do primeiro casamento, por ela tê-lo confrontado sobre a poligamia, irá se dispor às situações mais ridículas ao seguir as orientações dos marabutos para se livrar de seu problema.

Paralelamente, veremos malas pretas cheias de dinheiro, moedas jogadas aos pobres, negociatas excusas, eminência parda, garrafa de água Evian vs. mapa da África e uma legião de mendigos com todos os tipos de deformidades, como se tivessem saído do filme "Monstros", de Tod Browning.

Como tudo isso se encaixa no final? Só vendo o filme para descobrir.



Ceddo (1977)

O filme mais árido de Sembene, tratando de conflitos religiosos entre cristãos e muçulmanos numa comunidade.

Os "Intrusos" (Ceddo) sequestram a princesa Yacine Dior, por não quererem se tornar muçulmanos. Segue-se uma longa discussão teológica sobre os lados positivos e negativos das duas religiões, com direito a rituais, num tom (acredito que proposital) bem teatral.

Tem qualidades, claro, e uma poderosa figura feminina, mas ter interesse e conhecimento sobre o  assunto pode ajudar na sua apreciação.

Na trilha sonora Manu Dibango (que descobri que faleceu de COVID 19 em março!), coro em diola, coral St. Joseph de Cluny - Dakar e até uma música do americano Arthur Simms ("I'll make it home someday") "comentam" a ação.


Campo de Thiaroye (1988)

O massacre do campo de Thiaroye, episódio acontecido no final da Segunda Guerra Mundial, estava praticamente esquecido quando Ousmane Sembene, junto de Thierno Faty Sow, apresentou no 45º Festival de Veneza este filme, que ganhou o Prêmio Especial do Júri.

Em Emitai ele havia mostrado como os africanos haviam sido convocados a lutar naquela guerra. Neste ele mostra o retorno, ao final do conflito, daqueles soldados que bravamente ajudaram a derrotar os alemães ao lado dos franceses. 

Para entender toda a complexidade do assunto, nesse filme que tem mais de duas horas e meia de duração, recomendo a leitura dessa excelente matéria.

Mas o importante é ressaltar que, nesse que é seu filme mais masculino, Sembene e seu co-diretor expõem a injustiça sofrida por soldados africanos que foram obrigados, pelo poder colonial, a entrarem numa guerra que não era sua, treinaram, se prepararam, ajudaram a vencer o nazi-fascismo, muitos morreram, outros ficaram mutilados física e psicologicamente e, terminada a guerra, se deram conta que tiveram direitos muito inferiores aos dos franceses, motivo da revolta que levou ao massacre.

Campo de Thiaroye ficou proibido de ser exibido na França por 17 anos, assim como aconteceu com "Glória Feita de Sangue" do Kubrick (porque será?), sendo lançado apenas em DVD.

Até hoje não se sabe o número exato de mortos daquele massacre acontecido no dia 1 de dezembro de 1944.


Guelwaar (1992)

O corpo de Pierre Henri Thioune, dito Guelwaar, desaparece do necrotério do hospital. Chamada, a polícia descobre que ele foi enterrado por engano num cemitério muçulmano.

Sembene volta a abordar conflito de religiões, mas dessa vez de uma forma mais palatável para o grande público.

Agora, a briga é para desenterrar o corpo e levá-lo para cemitério cristão, mas os muçulmanos não aceitam, por acharem que o corpo é de um membro de sua comunidade. Enfim, um verdadeiro quiprocó que quase leva a uma batalha campal.

Neste caso, porém, o assunto principal é a ajuda humanitária que países da Europa e da América vivem oferecendo aos africanos para desencargo de consciência.

Guelwaar é um ativista que se opõe radicalmente contra isso. Num evento promovido pelo prefeito para agradecer a uma dessas ajudas, ele faz um discurso bem duro ao que acredita ser uma mendicância.

Transcrevo algumas das falas:

"Países que nos oferecem ajuda com ostentação fingida riem às nossas costas".

"Se ainda tínhamos algum orgulho ele foi consumido por estes donativos".

"A seca, a fome e as doenças não são desgraças. A desgraça é quando um povo inteiro espera por outros povos para alimentá-lo e vesti-lo. Este povo só será capaz de dizer uma palavra: obrigado, obrigado, obrigado..."

A trilha sonora, que sempre serve como um contador de histórias nos filmes de Sembene, é uma das mais belas, emocionantes, de sua obra.


Faat Kiné (2001)

Depois de mostrar as agruras de seu país em várias épocas da história, Sembene mostra uma sociedade senegalesa moderna, hiper-colorida, empolgante, com carros modernos nas ruas, as pessoas possuem celular, embora as mulheres ainda carreguem latas d'água na cabeça. Faat Kiné é o nome da personagem principal, magnificamente interpretada por Venus Seye. Ela é uma mulher independente, que se desenvolveu por méritos próprios, é dona de um posto de gasolina, mãe de um casal de filhos que criou sozinha e acabaram de passar no vestibular e tem o domínio sobre os homens que a cercam, sejam empregados, paqueras, amigos, ex-maridos, amantes, rivais etc. No entanto ela e sua mãe trazem marcas de um passado de relacionamento abusivo com o pai.

O filme é basicamente isso, uma África que vive a contradição entre um passado colonial e essa modernização que tráz um toque neo-colonial.


Moolaadé (2004)

Após ter mostrado uma África moderna, vibrante, em Faat Kiné, Sembene volta sua câmera para um dos mais brutais costumes africanos, a prática da mutilação genital de garotas pré-pubescentes, que leva à morte de muitas delas.

No período da chamada "purificação", seis meninas fogem do ritual, sendo que quatro vão buscar refúgio na vila onde mora Collé Ardo, esposa do meio de Bathily e mãe de uma adolescente que ela não permitiu ser purificada.

Para proteger as garotas Collé lança mão do "moolaadé", uma proteção espiritual que consiste em estender uma corda colorida na entrada da vila, impedindo a entrada das pessoas, e só ela pode revogar isso.

A aldeia entrará em polvorosa, com os homens e as salindanas (mulheres que realizam o ritual) querendo o fim do moolaadé, e as outras mulheres ficando ao lado de Collé. 

A pressão consistirá em retirar e queimar os rádios de pilha das mulheres e, mais radical, fazer com que Bathily dê uma surra de cinta em público na esposa. O único homem que ficará ao lado dela será o "Mercenário", o vendedor de bugigangas do local. Collé não se dobrará.

Parece natural que Sembene, em seu canto do cisne, faça um filme radicalmente feminino como esse, indo contra uma tradição cruel como essa da mutilação de meninas.

Não deixa de ser sintomático que o último plano do seu cinema seja o de antenas de tevê na aldeia.






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