23/12/2005

QUESTÃO DE PATERNIDADE: BENS CONFISCADOS

A questão do título tem se mostrado uma tendência no cinema atual desde o último Festival de Cannes. Alguns dos grandes cineastas contemporâneos, de David Cronenberg a Steven Spielberg, de Jim Jarmusch a Carlos Reichenbach, resolveram resgatar uma figura que, não apenas pela decadência total de valores que vivemos, mas também pelas mais recentes descobertas científicas no campo da reprodução humana, parece estar se tornando quase desnecessária: o pai.
Já comentei por aqui sobre Marcas da Violência e Flores Partidas. Chegou a vez de Bens Confiscados.
Começa com uma mulher no parapeito do apartamento, prestes a saltar. A câmera faz um movimento em volta dela, descortinando a cidade de São Paulo, testemunha indiferente do drama que ali se desenrola.
Logo depois ficaremos sabendo o motivo do suicídio: a esposa de um senador, Américo Baldani, mais por ciúmes das traições do marido do que por um nobre sentimento patriótico, resolveu denunciá-lo como participante num esquema de corrupção, para alegria da imprensa. A denúncia irá afetar a vida de várias pessoas, em especial a mulher do início, uma famosa estilista e mãe solteira do único filho varão do senador, Luís Roberto (Renan Augusto), a quem ele adora mas nunca reconheceu legalmente. A existência do rapaz era mantida em sigilo, mas com todo o escândalo seria uma questão de tempo até que a imprensa o descobrisse.
Para evitar que isso aconteça é enviado a São Paulo o assessor do senador, Paulo Hermes (Antônio Grassi), cuja missão é raptar o garoto e levá-lo até uma praia escondida no sul do país. Para cuidar dele é escolhida a enfermeira-chefe de um hospital carioca, Serena (Betty Faria), ela também uma ex-amante do político.
Ao chegar à casa de praia onde ficarão, na companhia do casal Lobo e Penha (Werner Schünemann e Márcia de Oliveira), ela encontra Luís num estado lastimável, doente, sujo e com hematomas pelo corpo provocados pelo caseiro. Com os cuidados de Serena e Penha o rapaz se recupera. Mas a violência cada vez maior de Lobo contra os três, provocada por ciúmes e ambição, faz com que Paulo os leve para um hotel na cidade.
Ali Serena se envolverá com um engenheiro de pesca húngaro, Miklos (Eduardo Dusek), e Luís com duas jovens estudantes de pedagogia hospedadas no hotel para um simpósio (Marina Person e Fernanda Carvalho Leite). Serena, educadamente, recusará um relacionamento mais íntimo com Miklos; Luís será humilhado por uma das garotas que o reconheceu pelos noticiários. Fragilizados, carentes, os dois, mesmo com a diferença de idade, finalmente se apaixonarão, antes que a política venha novamente interferir em seus destinos.
Se em Flores Partidas nunca víamos o suposto filho, aqui é o pai que não é mostrado nenhuma vez. Mas ao contrário do filme de Jarmusch, neste iremos saber tudo sobre o senador. Pelos relatos dos outros, podemos pintar um retrato completo dele: corrupto sim, desonesto, mas também uma pessoa alegre, cativante, atencioso com suas namoradas e um grande amante. Um ser multifacetado, que o filho revoltado aos poucos irá conhecer, mesmo à distância.
Reichenbach, seguindo a lição de um de seus mestres, Valerio Zurlini, mostra como os grandes fatos históricos de um país podem afetar a vida afetiva e existencial de seus mais simples habitantes.
Além de Zurlini, diretor de A Moça Com a Valise, o cineasta presta homenagem a Douglas Sirk e seus melodramas com mulheres fortes mas que invariavelmente sofrem por amor, como em Desejo Atroz e Palavras ao Vento, cujos cartazes podemos ver na fachada de um cinema. O episódio com as pedagogas também tem seu significado, pois afinal trata-se da educação sentimental de um adolescente.
O destino dado ao garoto parece meio abrupto, mas talvez a intenção tenha sido mesmo essa, para que melhor possamos sentir a solidão de Serena.
A última cena, que lembra o final de Nunca Fomos Tão Felizes, de Murilo Salles (e que igualmente falava da ausência do pai, mas num outro contexto), passa-se na praia fria e vazia ao entardecer, um cenário tão indiferente quanto a selva de pedra do começo. Duas mulheres se encontram: uma, algemada dentro do carro da polícia, as mãos ensanguentadas, afirma que agora está livre; a outra, que Paulo Hermes disse estar finalmente livre, parece para sempre cativa.

15 comentários:

Anônimo disse...

Confesso o q. ainda não tive coragem de dizer ao Reichenbach q. gostei da 1.ª parte de "Bens...", me senti diante de seu melhor filme, mas a partir da entrada das pedagogas, perdi o interesse, q. se sustentou na maioria das vezes pela presença de Dusek. Aos meus olhos, e talvez eu seja muito suspeito nisso, o filme perde bastante com a saída de cena de Márcia de Oliveira. E de fato, não consegui me convencer da aproximação entre o garoto e Betty e me pareceu que a presença daquelas garotas pouco acrescenta ao drama, mas sua leitura do filme é muito instigante, até pq., pelo q. sei, esse não era o objetivo central do filme (o resgate da figura paterna), mas vc. levanta essa questão de forma a 'des-cobrir' o olhar do diretor sobre seus interesses. Vou me esforçar p/ rever!!

Anônimo disse...

Eduardo, eu revi o filme para poder escrever o texto. Na primeira vez que vi não entendi a função das pedagogas, mas na revisão percebi que as palavras "ensinar" ou "dar uma aula" (se referindo ao sexo, claro) são ditas algumas vezes pelas moças, dai que eu fiz a ligação com a educação sentimental. Não compreendi muito bem o "muito suspeito nisso" mas a Márcia de Oliveira, além de ótima atriz, é um colírio para olhos cansados..hehehe!
Sei que o filme está pronto há mais de um ano. Podemos então, talvez, considerá-lo um precursor dessa tendência, mesmo que o objetivo inicial não tenha sido esse. A coincidência (ou como quiser chamar) fez com que fosse lançado apenas agora, justamente no momento em que vários filmes em cartaz, e outros ainda inéditos, fazem a pergunta: o que é ser pai?
Abraço!

Anônimo disse...

Que texto lindo, Sergio! E eu que sou fã do Reichenbach...Beijos!
(meu comment segue em pleno dia de Natal, então...FELIZ NATAL!)

Anônimo disse...

Obrigado, Graciele! Somos dois grandes fãs do Reichenbach. e Bens Confiscados é belíssimo! Beijos!
E FELIZ NATAL!!!

Anônimo disse...

Fala Sérgio!!
Ora, vc. sabe sim pq. me considero suspeito em relação a Márcia, pois ela esteve no meu 1.º trabalho realizado p/ o palco: "A Cor da Palavra" e tb. está em "Claustro", fica claro evidentemente q. admiro seu talento.

Mas tenha a convicção de q. se for possível, irei rever "Bens..." e darei uma chance ao filme de Jarmusch, de qm. não sou fã, acima de tudo, por conta de seus textos.

Anônimo disse...

Sim, e ela está extraordinária em "Claustro"!!! Se não me engano ela trabalhou em "Garotas do ABC" também, certo? Sem dúvida é uma das melhores atrizes da nova geração!!!

Andrea Ormond disse...

oi Sergio, ainda não vi "Bens Confiscados", quando ver dou minha opinião nessa agradabilissima conversa entre vc e o Edu que adorei acompanhar. E o seu texto tb está perfeito, deixando a pessoa com água na boca de ver o filme :) O Dicionário dos Diretores da Boca, que vc perguntou, é muito bom. Para te dizer a verdade não li, devorei, e encontrei ele no site da Siciliano. Demoraram uns dias pra entregar, mas valeu bastante a pena :) Beijão pra vc e ótimo final de ano!!

Anônimo disse...

Olá, Andréa! Então veja logo para poder se juntar a nós na conversa hehe! Obrigado pela dica sobre o Dicionário do Alfredo Sternheim, vou já entrar no site da Siciliano para encomendar meu exemplar! Beijão, feliz 2006 e vida longa ao Estranho Encontro!!!

Anônimo disse...

olha só, vc abordou outra questão, a paternidade, genial. tem uma psicóloga que faz um trabalho com adolescentes grávidas e ela fala da falta de paternidade e responsabilidade exigidas aos pais adolescentes. eles no máximo visitam os filhos e engravidam outras, pq não sentem o peso da responsabilidade. ela disse que são as mulheres que terão que dizer não para não engravidarem e terão que se cuidar para não engravidarem, pq é com elas q ficam as responsabilidades.

Anônimo disse...

é interessante que o garoto nunca viu o seu pai. eu já não sei se eles se apaixonam. acho que rola simplesmente. eles se encantam e têm sentimentos confusos e complexos, mas não acho que seja paixão. beijos, pedrita

Anônimo disse...

Olá, Pedrita, obrigado pelo "comment"!
Essa questão da paternidade é mesmo complexa. Este ano vários cineastas, além dos que eu citei (Wim Wenders, Irmãos Dardenne...) fizeram filmes abordando o assunto. O trabalho dessa psicóloga parece ser muito importante mesmo, nessa conscientização das adolescentes.
A relação do garoto com a enfermeira é ambígua. Eles podem ter se apaixonado ou, como você bem disse, devido aos sentimentos confusos, terem procurado um pouco de afeto um no outro. Beijo!

Anônimo disse...

Ainda em sintonia com esse tema, a novela das 'oito' ou das 'nove', q. eu não vejo, não por preconceito, mas por outras preferências, no entanto, ao ver casualmente Tony Ramos (o maior ator brasileiro de sua geração e além de tudo, gde sãopaulino!!!) recebendo um prêmio, imediatamente pensei em como vc. está certo sobre essa sincronicidade!!

Anônimo disse...

É mesmo, Eduardo? E o que acontecia nessa cena? Ele dizia alguma coisa especial? O Tony é grande, como ator e como são-paulino..hehe! Pelo trailer de "Seu eu Fosse Você" já ficou claro que a dele será uma das grandes interpretações de 2006!!!

Anônimo disse...

Cara, te confesso um sonho, se vier a dirigir 01 único longa, estaria feliz se pudesse contar com a presença de Tony, enfim... sobre a cena em questão, na verdade, como disse, não vejo a novela, mas na tal premiação q. ele recebeu, ficou claro q. esse tema da paternidade justamente ligado ao personagem dele é o tema central. E esse filme do Daniel já está na minha lista de interesses de 2006, exatamente pela presença do sãopaulino.

Anônimo disse...

Olha só, ontem resolvi ir assistir a pré-estréia do "Se eu Fosse Você". Depois de 1 hora de filme, adivinha o que acontece? Queima a lâmpada do projetor!!! Lamentável!
Não vou falar sobre o filme, mas dizer que num projeto desse tem que haver uma química total entre os atores, e até onde eu pude ver Tony e Glória Pires estão excelentes, a química funcionou!
Vou tentar ver algum capítulo dessa novela só para poder apreciar os dois.
E desde já torço para que esse seu sonho torne-se realidade, com o Tony no elenco, claro..hehehe!

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